sábado, dezembro 10, 2005

O Incidente Natalício

- Uma história de Natal com um final mais ou menos feliz… -

Ela acordou estremunhada com o toque insistente da campainha do portão. Resmungando, tirou a manta dos joelhos e correu com o gato que se aninhara no seu colo; àquela hora e logo na noite de Natal, não deveria ser coisa boa.

Espreitou pela janela e viu um tipo barrigudo envolto numa capa que pontapeava os arbustos raivosamente, como se tivesse acabado de receber alguma má notícia. Passou pelo armário da entrada, e tirou a caçadeira do falecido Antunes que mantinha sempre carregada “por causa das moscas”.

Ajeitou o xaile, e maldizendo todos os barrigudos que têm a mania de tocar à porta das pessoas tarde e a más horas encaminhou-se para o portão; enquanto o seu ouvido treinado de tradutora reformada, a informava que o tipo soltava pragas em finlandês fluente. Pelo menos era culto…

Quando se acercou do gradeamento, o homem tirou galantemente o gorro da cabeça e cumprimentou-a com um sotaque arrastado – Boa noite, senhora. Desculpe incomodar, mas o meu veículo avariou-se e necessito de usar um telefone. O meu telemóvel não tem rede aqui…

Ela olhou-o da cabeça aos pés (mais precisamente da cintura para baixo, e depois para cima); ele envergava um abafo de peles grossíssimas que não deixavam ver coisa alguma. Espreitou para a estrada mas não viu nenhum automóvel, pelo que proferiu – É natural. Estamos no interior e aqui poucos têm dessas modernices. Foi muito longe, o acidente? É que daqui não se vê nada.

- Foi a cerca de dois quilómetros – Disse ele. Se não fosse a capa e as botas já tinha gelado. – Depois pensando melhor, acrescentou – É natural que desconfie, mas acredite que não tenho más intenções. Preciso apenas de telefonar para a sede para me virem rebocar. Não demora nada.

- Medo, eu? – Riu-se ela mostrando-lhe a escopeta – Num piscar de olhos fazia-lhe mais um furo nesse traseiro redondo. Mas era uma pena, claro. – Abriu o portão e deixando-o passar guiou-o até casa, observando-o apreciativamente pelo canto do olho.

Quando entraram, o tipo aproximou-se da lareira e aqueceu-se esfregando as mãos. – É uma noite péssima para ficar empanado. E tinha logo que ser hoje.

- Também o que é que você anda a fazer na noite de natal por estradas secundárias? – Perguntou-lhe ela descaradamente – Esta é uma noite para estar em casa, e não para andar por aí a gelar os enfeites de Natal.
Ele riu-se também – Andava a fazer entregas de última hora; e deste modo não vou ter hipótese alguma.

Imagino as reclamações que vou receber amanhã. Importa-se que use o seu telefone? Não demoro muito… – Pediu delicadamente, compondo um sorriso amável.

- Está ali naquele canto – Informou a mulher – Esteja à vontade, que eu fico aqui à lareira; isto está um frio que não se pode…

Ela ficou sentada no sofá. E enquanto fingia estar absorvida pelo programa que passava na televisão, observou-o atentamente. Conseguiu ouvi-lo a descompor um tal Snar, novamente num finlandês cheio de ameaças e alusões ordinárias. O cabelo comprido e as barbas faziam-lhe lembrar alguém; mas a sua memória também já não era grande coisa.

Terminado o telefonema ele virou-se, e encarando-a agradeceu – Fico-lhe muito agradecido; agora é só aguardar cerca de uma hora e eles vêm recolher-me. Mas vou esperar lá fora pois não posso deixar as encomendas ali à mão de qualquer um.

Ela reparou-lhe no casaco vermelho que se notava debaixo da capa semi-aberta; fez uma expressão marota e exclamou – Eu sabia! Você é mesmo o Pai Natal. – Reclinou-se um pouco para trás e puxando o roupão para cima até à orla das cuecas, propôs – E que tal se desta vez me desse uma prenda como deve ser? Tenho sido uma boa menina…

TheOldMan