sábado, dezembro 17, 2005

puzzle de ervilhas

Entre o que agora sabia e o que havia imaginado ia uma enorme distância, que percorrera a custo, como se, no receio de se ver preso na enchente, tivesse atravessado num ápice a malhada da praia até se lhe ferirem os pés descalços nos bordos afiados das cascas dos bivalves presos às rochas. Entre a fantasia descarada e a verdade envergonhada, houvera um percurso de construção, como quem monta um puzzle cujas peças mais não são do que palavras, as palavras que lhe largara em cima com parcimónia: soltas, pingadas, bichos-de-conta, vagens de ervilha, descascadas uma a uma num regaço paciente de avó. Ali, algures pelo meio, notara um instante de névoa, no qual a tarefa havia perdido o rumo, a textura e o sentido, as peças haviam caído do colo para o chão (espalhando-se) e um cansaço demasiado para se baixar e as apanhar. Acabaria, eventualmente, por fazê-lo, dedicando-se, com as pontas feridas dos dedos, à micro tarefa de lhe reconstruir o esqueleto da alma. Ao encaixe da última peça, deu-lhe uma pontada nos rins, por não descortinar a perfeição que esperara. Apercebera-se de que o que tinha à sua frente, não era nenhum sonho de uma noite de verão, nenhuma deusa da escrita de algibeira; de que não haveria bela helena para o servir, afrodite saída da espuma, nem perséfone retornada dos infernos, mas, apenas, uma mulher, uma simples mulher: imersa nas suas complexidades circulares, refém de fraquezas hérculeas e propulsionando-se com vulgar eficiência por entre os labirintos minotauricos da sua vida comezinha.

controversa maresia